É sabido que, apesar de ser atribuída a uma sociedade personalidade e, consequentemente, capacidade de ser sujeito de direitos e obrigações, ela não possui vontade. Essa vontade é exercida por seus representantes (um ou todos nas sociedades menores) ou por pessoas estranhas, desde que o contrato assim o permita.
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Porém, nem sempre os atos praticados por seus representantes estão revestidos dos acobertamentos legais, seja pela extrapolação de seus poderes, em detrimento do que previamente está acostado em seus estatutos, seja pela ilegalidade intrínseca do ato em si, não obstante na sua gênese estar autorizado, mas que, de alguma forma, o praticante do ato extrapola seus limites.
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Caracterizada a ilicitude do ato em decorrência da impropriedade ou do extrapolamento do mesmo e seu alcance, poderá e deverá seu praticante ser responsabilizado por este ato em desacordo.
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Os poderes outorgados à pessoa jurídica estão delimitados nos atos constitutivos, em seu ordenamento interno (contrato social, estatutos), bem como delimitados pela lei, porque os estatutos não podem contrariar normas cogentes, quando a atuação de determinadas pessoas jurídicas é autorizada ou fiscalizada (em sentido estrito) pelo Estado. Há restrições de ordem legal, por vezes impostas pelo Estado, que obrigam a certo controle estatal. É o que ocorre entre nós, por exemplo, no tocante às instituições financeiras.
“Ab initio “ diz o artigo 47 do Código Civil/2002:
Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo.
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Em decorrência do previsto no artigo acima, deduz-se facilmente que os administradores de uma pessoa jurídica, quando praticam atos em nome desta, consequentemente,obrigam-na a honrá-los e a cumpri-los e, lado outro, em eventual desacerto ou desajuste que gere consequências jurídicas indevidas, de igual forma merecem reprimenda.
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Assim, para a legitimidade à prática de atos representativos, os administradores necessitam:
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Em relação a esta última condição,o objetivo preliminar também é a limitaçãoda liberdade de ação e o preordenamento da sua atuação.
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No tocante ao tipo de sociedade Ltda, os artigos 1060 e 1061 do CC./2002 devem ser analisados conjuntamente, após a alteração dada pela Lei 12.375, de 2010, na qual se percebe claramente o objetivo da alteração como forma de proteção e preservação dos interesses da empresa e até mesmo como forma demonstrativa da real responsabilidade dos administradores em relação aos interesses da empresa.
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A menção à integralização ou não do capital, como consta da referência legal, baliza este entendimento.
Dizem, portanto, os dispositivos citados:
Art. 1.060. A sociedade limitada é administrada por uma ou mais pessoas designadas no contrato social ou em ato separado.
Parágrafo único. A administração atribuída no contrato a todos os sócios não se estende de pleno direito aos que posteriormente adquiram essa qualidade.
Art. 1.061. A designação de administradores não sócios dependerá de aprovação da unanimidade dos sócios, enquanto o capital não estiver integralizado, e de 2/3 (dois terços), no mínimo, após a integralização. (Redação dada pela Lei nº 12.375, de 2010)
Art. 1.064. O uso da firma ou denominação social é privativo dos administradores que tenham os necessários poderes.
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Até então, dentro um cenário de regularidade dos atos praticados pelos representantes legais, nada de novo trar-se-ia ao mundo jurídico, diante da ausência de questionamentos sobre a legalidade e efetividade do ato.
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Contudo, exatamente quando isso não ocorre, é que surgem os problemas decorrentes da ilicitude do ato e que merecem análise e destaque da sua gênese e de suas consequências para a própria empresa, para os seus praticantes e para terceiros quando:
a) exorbitam-se os poderes
b) não agem de acordo com a atividade empresarial
Por conseguinte, pergunta-se:
– E as consequências advindas destes atos?E a responsabilidade civil/contratual da sociedade empresária e do empresário perante terceiros: estes atos vinculariam a sociedade?
– Podem a sociedade empresária e o empresário ser compelidos a cumprirem o negócio celebrado que extrapola seu objeto social ou para cujo ato o administrador ou gerente não detinha poderes para tal?
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Segundo os ensinamentos doutrinários e a legislação, aliado ao entendimento jurisprudencial, as respostas para as perguntas acima teriam explicação diante da teoria ultra-vires vires e da teoria da aparência.
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Atos ultra-vires (fora das forças) são aqueles que foram praticados em extrapolação aos limites do objeto e da sociedade ou em desacordo com o objeto social, sem poderes para tal ou ainda vedados.
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Mister ainda esclarecer que, lado outro, existem ainda os chamados atos intra-vires (dentro das forças) e que são aqueles praticados por administradores, prepostos e gerentes que agem de acordo com os interesses da sociedade e nos limites do objeto e da sociedade.
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Essa teoria surgiu para proteger interesses dos acionistas e investidores. Ela tenta evitar desvio de finalidade na administração, mas acaba por ser prejudicial aos interesses de terceiros de boa-fé que contratam com a sociedade, já que ela não vai responder pelos negócios celebrados com abuso de poderes dos administradores e a sociedade não responde pelos atos praticados por seus sócios ou administradores que ultrapassem seus poderes ou por operações evidentemente estranhas aos negócios da sociedade.
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Com o Código Civil de 2002, foi acolhida a teoria “ultra-vires”, que afirma que a sociedade não se vincula se os atos foram evidentemente estranhos ao objeto social. Dessa forma, de acordo com a interpretação literal do artigo 1.015, III do Código Civil, qualquer ato praticado em nome da pessoa jurídica, por seus sócios ou administradores, que ultrapassasse seus poderes, é nulo. Ao terceiro, caberia apenas mover ação contra aquele que extrapolou os limites sociais.
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Diz o artigo citado:
Art. 1.015. No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir.
Parágrafo único. O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses:
I – se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade;
II – provando-se que era conhecida do terceiro;
III – tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade. ( T.U.V.)
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Deveria, portanto, ser reconhecida tal prática, a legalidade dos atos e que a sociedade se voltasse contra os responsáveis, preservando-se o terceiro de boa-fé.
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Modernamente, porém, na Inglaterra e nos Estados Unidos, a Teoria Ultra-Vires foi sepultada, não mais existindo em sua versão originária e inflexível, o que para vários autores essa adoção pelo Civil/02 significou um retrocesso.
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Em sentido oposto à teoria ultra-vires, a teoria da aparência afirma a subsistência dos atos praticados em nome da sociedade, ainda que a prática desses atos não esteja prevista no contrato ou estatuto social ou os contrariem. Reconhece, pois, como válidos atos aparentes, atribuindo-lhes efeitos jurídicos como se reais fossem.
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Assim a teoria da aparência é princípio de direito que fundamenta as relações empresariais e, por não estar expresso, é muitas vezes desprezado pelos operadores do direito e visa:
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É intuitivo que tais cautelas exigem conhecimento técnico, dispêndio de tempo e formalidades que não se coadunam com grande parte das práticas massificadas do comércio, da indústria e dos serviços, em especial no que tange às relações de consumo e à circulação cambial.
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A bem da verdade, o inverídico ou irreal torna-se verídico e real. Deve haver aparência perante terceiros, os quais, mediante boa-fé e confiando na imagem externa da sociedade, contratam com a sociedade, na expectativa de que seus representantes detenham poderes para tanto.
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Nem sempre é possível distinguir a aparência da realidade, sendo, pois, impossível impor cautela a priori em todas as relações jurídicas, diante da complexidade de determinados atos, da rapidez com que eles se desenvolvem, a quantidade de negócios realizados etc.
Ex: exigir contrato de trabalho de um funcionário antes de efetuar a compra quando este usa crachá e está dentro da loja parece-nos inconcebível.
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O ato assim é válido e eficaz perante terceiros de boa fé e envolve:
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Em países como a França esta teoria foi justificada pelo princípio error comunis facit jus/boa fé (erro comum cria direito); na Itália, pelo princípio da credibilidade; na Alemanha, pelo princípio da publicidade e, no Brasil, não há uma disposição geral que contemple a proteção da pessoa “enganada” pela aparência.
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Ocorre que, segundo a já abordada Teoria da Aparência, primeiro deverá a sociedade adimplir suas obrigações, para somente depois voltar-se contra o representante que agiu em desconformidade com seus poderes.
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Tal solução visa a precípua proteção da segurança jurídica, da circulação dos bens e riquezas e a proteção do terceiro de boa-fé, que não pode ser obrigado a proceder com a consulta dos atos constitutivos da empresa toda vez que com ela negociar, sob pena de criar um entrave aos negócios empresariais.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Àguisa do acima exposto, pretendeu-se revelar a posição individual de cada teoria, explicitando-a e, da mesma forma, demonstrando sua efetiva alocação dentro do ordenamento jurídico nacional, com enfoque inicial na norma positivada específica para matéria à luz do artigo 1015 do CC.
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Como dito, segundo abalizados autores, ocorrera equívoco do legislador na adoção pelo CC da teoria dos atos ultra-vires, o que fez com que, por força do próprio inc. II do citado artigo, já ocorresse relativa flexibilização na sua aplicação, ao passo que, nos países europeus e nos EUA, ela já fora sepultada.
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Lado outro, a modernização da sociedade e dos negócios em si e o incremento das ações de natureza empresarial, seja pelo grande, seja pelo pequeno empresário, este sabidamente desprovido de alguns dos alicerces comuns aos grandes quanto à tocada de seus negócios, vem a teoria da aparência recebendo cada vez mais adeptos ao redor do mundo jurídico contemporâneo global e, ainda bem, acompanhado pelo crescente entendimento dos nossos tribunais na sua recepção.
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Parece-nos mais lógico que se atribua à sociedade e não aos terceiros de boa-fé, especialmente aos consumidores (hipossuficientes), as consequências da culpa in vigilando ou in eligendo pela prática de negócios jurídicos fora do contrato ou do objeto social.
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Por fim, apenas como lembrança, nada se citou em relação à responsabilização nos termos das sociedades anônimas visto que a Lei 6404/74 já dispõe de mecanismos próprios e aptos a tal fim nos termos dos artigos 154 e 158.
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Texto de Guilherme C. F. Bravo