Imagine uma empresa como uma pessoa. Tal pessoa, no mundo jurídico, possui um conjunto de bens, de direitos, e de obrigações próprios, independentes dos seus sócios. Essa é a denominada personalidade jurídica. Graças a ela, a empresa pode celebrar contratos, adquirir bens e até mesmo ser processada no âmbito judicial.
O patrimônio da pessoa física dos sócios, na maioria dos casos (a depender da espécie escolhida para a empresa – se microempreendedor individual (MEI), empresário individual (EI), sociedade limitada (LTDA), sociedade simples (SS), sociedade anônima (SA), sociedade limitada unipessoal (SLU) etc.), é protegido pelo véu da limitação de responsabilidade empresarial. Apesar disso, nos casos de execução, seja fiscal ou comum, os limites da responsabilidade da personalidade jurídica podem ser superados por um incidente processual, sendo este denominado Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ).
O IDPJ é utilizado como meio de levantar o véu da limitação da responsabilidade empresarial. Na prática, isso significa que o passivo da empresa executada poderá se misturar com os bens particulares dos sócios.
É comum observar empresas fechando as portas de forma irregular, sem passar pelo devido processo de liquidação e encerramento, abandonando, assim, quaisquer passivos existentes e/ou obrigações não cumpridas. Sobre essa dissolução irregular, a Súmula 435 do STJ traz a seguinte definição: “presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente”.
Diante disso, uma das questões mais debatidas no mundo jurídico é se a simples falta de bens para pagar as dívidas ou o encerramento irregular de uma empresa já são motivos suficientes para a responsabilização pessoal dos sócios não só pelas dívidas de natureza tributária, mas também, e principalmente, aquelas de natureza cível.
Até pouco tempo atrás, o entendimento consolidado era de que, nesses casos, a desconsideração da personalidade jurídica deveria ser deferida. A ideia era que, se a empresa não tinha bens para pagar seus credores e, ainda, havia encerrado suas atividades de forma irregular, os sócios deveriam responder com seu próprio patrimônio.
Contudo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem mudando esse entendimento. Há hoje um amplo debate onde se discute que a falta de bens ou o encerramento irregular, por si sós, não são motivos suficientes para a desconsideração. Segundo os defensores da tese do não deferimento da IDPJ, seria preciso provar que a empresa foi usada de forma abusiva para que a desconsideração ocorra. Ou seja, que os sócios se aproveitaram da personalidade jurídica para praticar atos ilícitos ou fraudar credores.
Em agosto de 2023, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça afetou os Recursos Especiais 1.873.187 e 1.873.811 para estabelecer entendimento unificado sobre o tema e decidir se é cabível a desconsideração da personalidade jurídica no caso de mera inexistência de bens penhoráveis ou de encerramento irregular das atividades da empresa. A controvérsia está cadastrada na base de dados do tribunal como Tema 1.210 e tem previsão de julgamento para o primeiro semestre de 2025.
Com base em matéria publicada pelo site oficial do STJ, o ministro Raul Araújo informou que a Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas (Congepac) localizou 39 acórdãos e 923 decisões monocráticas sobre o tema, sendo estas proferidas nas turmas de direito público do STJ. Nos colegiados de direito privado, também há julgados recentes abordando a questão de maneira uniforme.
Segundo a matéria, o entendimento mais adotado indica que a existência de indícios de encerramento irregular da empresa, mesmo quando aliada à falta de bens capazes de satisfazer o crédito em execução, não constitui motivo suficiente para o prosseguimento da desconsideração da personalidade jurídica e a retirada do véu da limitação de responsabilidade empresarial.
Conforme a decisão mencionada pelo ministro Raul Araújo, “a mera inexistência de bens penhoráveis ou eventual encerramento irregular das atividades da empresa não enseja a desconsideração da personalidade jurídica” (AgInt no AREsp 940.420/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, julgado com 26/06/2023, Dje de 30/06/2023).
Cumpre mencionar que, há algum tempo, o Conselho de Justiça Federal aprovou o Enunciado 292, da IV Jornada de Direito Civil, no sentido de que “o encerramento irregular das atividades da pessoa jurídica, por si só, não basta para caracterizar abuso da personalidade jurídica”.
Como podemos observar, apesar de o Tema 1.210 ainda não ter sido julgado, já existem diversos indícios de que o entendimento do judiciário, com o passar dos anos, foi alterado, e, atualmente, nos casos de encerramento irregular de empresas e inexistência de bens penhoráveis, o véu da pessoa jurídica é juridicamente mais sólido e respaldado.
Apesar disso, as incertezas em relação a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica sempre existirão. O incidente, portanto, é aplicado com base no contexto dos fatos. É importante ressaltar, porém, que os casos de abuso de personalidade jurídica não se confundem com tese abordada.
É do interesse de toda a sociedade que o tema abordado se torne cada vez mais transparente, pois a segurança jurídica, alcançada por meio de um entendimento unificado, beneficia todas as partes envolvidas. Assim, espera-se que, em breve, a Corte pacifique e unifique o entendimento sobre o tema.
Artigo escrito por
Lucas Trigueiro | OAB 213923