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Novo constitucionalismo e a postura dos juízes de juizados especiais

3 de Maio, 2022



O constitucionalismo contemporâneo é o marco histórico-filosófico que nos permite, a partir da segunda metade do século XX, ter uma maior consciência sobre o papel da linguagem e da filosofia no Direito. Em nossa quadra da história, é inadmissível pensarmos em evolução da ciência jurídica sem observar o comportamento do juiz-intérprete no ato de aplicação do Direito. Não podemos mais nos render ao pensamento objetificante do exegetismo e da metafísica clássica, tampouco nos sujeitar à consciência e ao julgamento voluntarista de quem decide os casos submetidos à apreciação do Poder Judiciário. A passagem da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem requer que não sejamos mais reféns de objetivismos e subjetivismos, pois nenhum dos dois é adequado ao paradigma pós-positivista trazido pela Constituição de 1988.

Ocorre que, na praxis judicial brasileira, em especial nos juizados especiais, ambos os modelos sobrevivem de acordo com a conveniência das dezenas de milhares de juízes espalhados pelo país. Qual modelo seguem? Isso acaba dependendo da vontade de cada um. Em certos momentos, o juiz é escravo da lei, sem se importar com a juridicidade-constitucionalidade. Por sua vez, quando não lhe convém a aplicação, afasta-se sua subsunção em nome do mero arbítrio subjetivo, geralmente lastreado em uma compreensão teleológica de que se está fazendo o que é justo.

Em seu livro Resposta Adequada ao Constitucionalismo Contemporâneo: Crítica Hermenêutica do Direito, Márcio Gil Tostes dos Santos defende que o primeiro modelo de positivismo, de cunho objetivista-exegético, atrelado à metafísica clássica “caracterizou-se pela pretensão de criar uma ciência jurídica objetiva, semelhante às ciências exatas, em razão de buscar uma objetividade científica acentuada na realidade palpável e não em uma especulação filosófica. Assim, o Direito se legitimava nos atos legislativos emanados pelo parlamento, especificamente na legislação e nos códigos”.

Nisso, podemos dizer, o Direito se resumia na lei e desconsiderava todo e qualquer fator extrínseco àquilo que estava sedimentado no texto¹. No livro O Direito e sua linguagem, Luis Alberto Warat explica que também podemos chamar os exegetas de positivistas lógicos, uma vez que pensavam que o conhecimento poderia ser obscurecido por determinadas perplexidades de natureza puramente linguística. O rigor da lei era, portanto, o paradigma da ciência jurídica, por acreditarem que seria impossível fazer ciência sem este rigor. Isto é, fazer ciência seria traduzir os dados do mundo em uma linguagem rigorosa.

Desse modo, a caracterização inicial do positivismo jurídico foi materializada pela codificação, agrupando e organizando as normais sistematicamente em torno de um objeto para tentar abarcar, em seus enunciados normativos, toda a realidade do mundo empírico.

Este modelo, porém, ruiu. A pretensão de prever todas as hipóteses de conflito e suas consequências jurídicas fracassou, e a ciência jurídica deveria se socorrer em abstrações sujeitas à interpretação do julgador, que lhe dava substrato suficiente para decidir uma causa. Com isso surgiram as normas abertas e os princípios (estes regem veementemente as regras da Lei nº 9.099/95), permitindo ao intérprete um espaço onde pudesse contribuir para a criação e efetivação do Direito. O uso de tais ferramentas para fazer valer o entendimento solitário do julgador é o problema da contemporaneidade do Direito pátrio, e que dá azo aos decisionismos que tanto se busca combater.

Bem como nos alerta José Joaquim Gomes Canotilho no artigo O ativismo judiciário: entre o nacionalismo, a globalização e a pobreza, temos manifestado as mais sérias reticências a este ativismo, por mais nobre que seja sua intencionalidade solidária. No solipsismo interpretativo da decisão tomada conforme a consciência do intérprete, há uma substituição do Direito por aquilo que o intérprete acredita que ele é, acarretando num sério déficit democrático das decisões. Nesse modelo há um desvirtuamento do que os representantes eleitos fixaram como regras gerais de convívio social para o axiologismo do intérprete, ou seja, para aquilo que o juiz acha “justo” ou “bom” para a sociedade.

A sociedade, os conflitos e, consequentemente, as demandas evoluíram de modo que a estrutura dos juizados, em pouco tempo, tornaram-se insuscetíveis de cumprir seus objetivos, apontando uma dificuldade crônica para sanar problemas relativos à morosidade e à litigiosidade habitual dos grandes empresários. Além disso, a agilidade visada no procedimento pela instituição de mecanismos como a dispensa do relatório, a irrecorribilidade das decisões interlocutórias e a aposta histórica no protagonismo judicial, reforçada pela Lei nº 9.099/95 em seus artigos 5º e 6º, com o tempo produziu um ambiente onde o juiz atua como dono do processo e propicia arbitrariedades.


¹ “Explicando melhor: o positivismo é uma postura científica que se solidifica de maneira decisiva no século XIX. O “positivo” a que se refere o termo positivismo é entendido aqui como sendo os fatos (…). Evidentemente, fatos, aqui, correspondem a determinada interpretação da realidade que engloba apenas aquilo que se pode contar, medir ou pesar ou, no limite, algo que se possa definir por meio de um experimento. (…) Isso que se chama de “exegetismo” tem sua origem aí: havia um texto especifico em torno do qual giravam os mais sofisticados estudos sobre o direito (…)” (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pág. 31)