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Juizados especiais e acesso à justiça: judiciário e cidadania, uma necessária aproximação

30 de Novembro, 2018



O presente artigo tem como objetivo analisar os Juizados Especiais Cíveis desde seus ideais incentivadores, abordando a relação entre acesso à justiça e cidadania, minudenciando o importante papel destes órgãos na garantia de acesso justo e igualitário à jurisdição para a população.

Vê-se que a própria instituição do Estado moderno, com a proibição da autotutela e assunção do monopólio da administração da justiça pelo Estado, torna necessária a existência de mecanismos para que o cidadão tenha acesso amplo e facilitado ao meio oficial de solução de conflitos, colocado à sua disposição pelo Estado. A jurisdição, modernamente compreendida, não pode ser considerada um privilégio, é direito subjetivo do cidadão e dever fundamental do Estado.

No ordenamento jurídico brasileiro, o acesso à justiça foi elevado à categoria de direito social-fundamental garantido subjetivamente a todos (CF, art. 5º, inc. XXXV) e nele se alicerçam todas as demais que objetivam a tutela dos direitos fundamentais. A falta ou a carência do acesso à justiça macula diretamente a cidadania, consoante assinalava Thomas Marshall em sua sempre contemporânea obra Cidadania, Classe Social e Status[1].

As cortes judiciais, portanto, são instituições intimamente ligadas aos direitos inerentes à cidadania, locus adequado para a depuração de litígios e problemas que as pessoas perpassam no mundo da vida, em que, não havendo autocomposição, haverá a intervenção do Estado-jurisdição a fim de sanear a situação posta a seu apreço por meio da ação judicial.

Regulamentar a vida em sociedade por normas jurídicas emanadas de órgãos públicos competentes não esgota o papel do Estado na regulação da vida social, sendo imprescindível a presença de mecanismos capazes de efetivar as regras existentes quando os demais componentes dos poderes tripartidos e membros da sociedade descumprem o que preconizou o Estado-legislador. Essa função é típica da jurisdição, e permitir ao cidadão comum – desprivilegiado de poder econômico e político – o acesso às engrenagens da Justiça é um secular objetivo do Estado moderno, até hoje não cumprido satisfatoriamente em nosso país tardiamente modernizado[2].

Segundo assinala Norberto Bobbio[3], a complexização das relações intramundanas tornou necessária a estatização do Direito e a consequente juridificação do Estado, isto é, se o Direito é concebido como um conjunto de regras impostas por quem ostenta o poder soberano (o próprio povo, através de representantes eleitos), não existe outro Direito além do estatal, tampouco outro Estado além do Jurídico. Eis a concepção de Estado de Direito (rule of Law) como uma forma de governo das leis, se contrapondo à realidade autocrática soberana (rule of men).

É justamente a concentração da autoridade nas mãos do Estado que faz surgir a necessidade de propiciar a todos o acesso igualitário à jurisdição, meio pelo qual se exerce a atividade judicante de proclamar a correta e adequada interpretação das leis diante de determinados fatos. O rule of law extinguiu dos particulares a possibilidade de resolverem por si grande parte dos seus próprios problemas, outorgando ao Estado tal função. Por essa razão, as deficiências do acesso à justiça representam, em outras palavras, o fracasso do Estado em um de seus mais elementares objetivos.

Cidadania não se resume à participação da população no campo político formal, mas em diferentes esferas em que se demanda pela observância dos direitos subjetivos e coletivos, imbricando sua própria concepção à necessária existência de um acesso abertamente disponibilizado a todos os administrados. Essa relação de fundamentalidade do acesso à justiça é brilhantemente definida por Capelletti e Garth:

O acesso à justiça pode ser encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.[4]

Sendo assim, a viabilização do acesso à justiça tornou-se ponto fulcral da consolidação da democracia brasileira após a redemocratização, mormente dando a devida atenção àquela parcela da sociedade historicamente excluída pela disparidade social. Instituir o acesso à justiça para todos é consecutar o princípio republicano, impedindo a existência de subcidadãos e sobrecidadãos[5].

Investimentos em estrutura e pessoas são imprescindíveis para o alcance deste desiderato. Consoante se observou, o crescimento do acervo processual e o nível de estagnação processual fazem com que, inexoravelmente, os servidores da justiça adotem posturas visando à eficiência, nem sempre preservando o aspecto qualitativo da condução processual e das decisões proferidas.

Nada obstante, há muito espaço para avanço além da esfera do investimento público, saneando deficiências que afetam todo o judiciário, como a necessidade de revisitarmos o ponto do duplo efeito da responsabilidade civil, visando ao desestímulo ao litígio, assim como a mudança de postura dos julgadores.

Texto de Luiz Gustavo Sobreira

 

[1] MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

[2] BAUMAN. Zygmunt. Globalização: As Consequências Humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

[3] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

[4] CAPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris, 2002, pág. 12.

[5] NEVES, Marcelo. Entre Subintegração e Sobreintegração: A Cidadania Inexistente. In: DADOS – Revista de Ciências Sociais, vol. 37, nº 2. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, pág. 253-276.