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Há limites no desconto em conta em empréstimos bancários comuns?

4 de Abril, 2022



São lícitos os descontos de parcelas de empréstimos bancários comuns em conta corrente, ainda que ela seja utilizada para recebimento de salários. Isso só pode ocorrer quando for previamente autorizado pelo mutuário, não sendo aplicáveis os limites previstos no § 1º do art. 1º da Lei nº 10.820/2003, que disciplina os empréstimos consignados em folha de pagamento. A controvérsia, porém, está em definir se, no bojo do contrato de mútuo bancário comum em que é feita a autorização do mutuário, é aplicável ou não, por analogia, a limitação de 35% prevista na referida lei.

O empréstimo consignado apresenta-se como uma das modalidades de empréstimo com menores riscos de inadimplência para instituições financeiras, pois o desconto das parcelas dá-se diretamente na folha de pagamento do trabalhador regido pela CLT, do servidor público ou do segurado do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), sem nenhuma ingerência do mutuário/correntista. Em razão justamente da robustez da garantia, isso é revertido em taxas de juros significativamente menores, ainda mais se comparado a outros tipos de empréstimos.

Uma vez acertado o consignado, não é dado ao mutuário, por expressa disposição legal, revogar a autorização concedida para que os descontos ocorram diretamente em sua folha de pagamento, a fim de modificar a forma de pagamento ajustada. Nessa modalidade, a parte da remuneração comprometida sequer chega a ingressar na conta corrente, não tendo o correntista nenhuma disposição sobre ela. Ou seja, sob o influxo da autonomia da vontade, o mutuário não possui instrumentos hábeis para impedir a dedução da parcela do empréstimo, pois o procedimento envolve apenas a fonte pagadora e a instituição financeira.

Em virtude do modo como o empréstimo consignado é operacionalizado, a lei estabeleceu um limite percentual que não pode ser excedido sobre o desconto em folha. Com tal providência, a lei visa impedir que o tomador que pretenda ter acesso a um crédito relativamente mais barato acabe por comprometer sua remuneração como um todo, inviabilizando, por consequência, sua subsistência e a de sua família.

Nas demais espécies de mútuo bancário, porém, o eventual estabelecimento de uma cláusula para autorizar o desconto de pagamentos em conta corrente consubstancia uma faculdade dada às partes contratantes, como expressão de sua vontade, destinada a facilitar a operacionalização do empréstimo tomado. Ou seja, é passível de revogação a qualquer tempo pelo mutuário.

Nesses empréstimos, o desconto automático decorre da própria obrigação assumida pela instituição financeira, no bojo do contrato de conta corrente de administração de caixa, procedendo, sob as ordens do correntista, aos pagamentos por ele determinados, desde que verificada a provisão de fundos. Registre-se, inclusive, que a instituição financeira não pode – no desempenho de sua obrigação legal, consideradas as características intrínsecas do contrato de conta corrente – individualizar a origem dos inúmeros lançamentos que ingressam na conta corrente e, uma vez ali integrado, apartá-los, para então sopesar a conveniência de se proceder ou não a determinado pagamento, de antemão ordenado pelo correntista.

Essa forma de pagamento não resulta em uma indevida retenção de patrimônio alheio, pois o desconto é precedido de expressa autorização do titular da conta corrente, como manifestação de sua vontade, por ocasião da celebração do contrato de mútuo. Tampouco é possível equipará-lo à uma dita constrição de salários, realizada por instituição financeira que, por evidente, não ostenta poder de império para tanto.

Diante das características do contrato de conta corrente, o desconto – devidamente avençado e autorizado pelo mutuário – não incide propriamente sobre a remuneração ali creditada, mas sim sobre o numerário existente, sobre o qual não se tece individualização ou divisão. Ressai de todo evidenciado, assim, que o mutuário tem muitos mecanismos para evitar que a instituição financeira realize os descontos contratados, possuindo livre acesso e disposição sobre todo o numerário de sua conta.

Com isso, não se encontra presente nos empréstimos comuns o fator que justifica a limitação do desconto no empréstimo consignado em folha de pagamento – o que, por si, impossibilita a utilização da analogia e a transposição dos regramentos. Refoge, pois, da atribuição jurisdicional, com indevida afronta ao Princípio da Separação do Poderes, promover a aplicação analógica de lei à hipótese que não guarda nenhuma semelhança com a relação contratual legalmente disciplinada.

Não se pode conceber, sob qualquer ângulo de análise, que a estipulação contratual de desconto em conta corrente – como forma de pagamento em empréstimos bancários comuns, a atender aos interesses das partes contratantes, sob o signo da autonomia da vontade e em absoluta consonância com as diretrizes do Conselho Monetário Nacional – possa vilipendiar o direito do titular da conta corrente, que pode revogar o ajuste ao seu alvedrio, assumindo, naturalmente, as consequências contratuais de sua opção.

A pretendida limitação dos descontos em conta corrente, por aplicação analógica da Lei nº 10.820/2003, tampouco se revestiria de instrumento idôneo a combater o endividamento exacerbado, com vistas à preservação do mínimo existencial do mutuário. Além de subverter todo o sistema legal das obrigações – tal providência teria o condão de modificar os termos ajustados, impondo-se ao credor o recebimento de prestação diversa, em prazo distinto do contratado, com indevido afastamento dos efeitos da mora, de modo a eternizar o cumprimento da obrigação, num descabido dirigismo contratual –, a limitação não se mostraria eficaz sob o prisma geral da economia ou sob o enfoque individual do mutuário, ao controle do superendividamento.

Tal proceder, sem respaldo legal, importaria numa infindável amortização negativa do débito. Haveria um aumento mensal e exponencial do saldo devedor, sem a devida conscientização sobre o dito “crédito responsável”, que consiste na não assunção de compromisso acima das capacidades financeiras para não haver o comprometimento do mínimo existencial.

Além disso, a generalização da medida – sem conferir ao credor a possibilidade de renegociar o débito, encontrando-se ausente uma política pública séria de “crédito responsável”, em que as instituições financeiras, por outro lado, também não estimulem o endividamento imprudente – redundaria na restrição e no encarecimento do crédito, como efeito colateral.

Por fim, a prevenção e o combate ao superendividamento, com vistas à preservação do mínimo existencial do mutuário, não se dão por meio de uma indevida intervenção judicial nos contratos, em substituição ao legislador. A esse relevante propósito sobreveio a Lei nº 14.181/2021, que alterou disposições do Código de Defesa do Consumidor para “aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento”.

Fonte: Informativo do STJ nº 728, de 14 de março de 2022